A grande tribo

Pense no perfil de um amante do Rock. Automaticamente idéias de contestação, não conformismo, liberdade, informalidade e agressividade vão surgir no seu mapa mental em uma fração de segundo. Se você pensar em pagode ou jazz outros elementos bem diferentes vão pintar o quadro com que você prejulga cada perfil. Esse é um bug mental comum e relevante: tendemos a achar que o gosto musical de alguém indica também os seus valores[i]. O ser humano é recordista em uma modalidade não-olímpica: o salto para conclusões. Fazemos uma salada (um algoritmo) entre padrões que associam classe econômica, faixa etária, roupas, óculos, tatuagens, piercings e adereços, profissão, lugar onde nasceu, time, onde estudou, que tipo de música gosta… e pulamos direto para adivinhar a essência. Sabemos que pessoas se sentem atraídas a se aproximar de gente com valores parecidos. Isso é seguro e buscamos segurança frente ao desconhecido. Como valores são difíceis de aferir nós só podemos nos guiar pelas aparências. Elas enganam mas é o que temos para decidir em velocidade. Nossas mentes evoluíram para tomar decisões em alta velocidade tendendo a generalizar em cima de poucas informações. É ingênuo imaginar se isso é certo ou errado pois nossas mentes operam na prática, não na teoria de um sistema de avaliação “justo” e inexistente.   A música é uma “pista” universal usada para formarmos opiniões sobre os outros. O punk agressivo, o amante de música clássica pacífico e sofisticado… A música tem potencial de aproximação e de afastamento. Em exemplo histórico, na primeira edição do rock in Rio cometeram o erro de colocar Erasmo Carlos cantando baladas adocicadas no dia do Heavy Metal…. foi a vaia mais feroz registrada no evento. Repare que mesmo dentro do rótulo “Rock” existem mais de 200[ii] tipos de música tão diferentes como Progressivo, Pop, Punk e Heavy. São muitas tribos. A busca por algo em comum é uma dança universal que ocorre quando pessoas tentam a se aproximar e criar justificativas para concluir que são da “mesma tribo”. Nesse sentido procuro sempre lembrar que também sou vítima de bugs que reduzem as outras pessoas a tribos com características pré-concebidas. Nessas horas procuro combater minha automática mente com uma reflexão simples que se fortaleceu em uma fase de minha vida onde viajava muito a trabalho e via diferenças impressionantes entre culturas, culinária, música, ritos e hábitos. Constatei que em meio às diferenças aparentes existe um padrão comum, uma grande tribo que compreende todas as culturas ao longo de nossa história: as pessoas sempre se reúnem em família e entre amigos em torno de comida, bebida, e música, reforçando seus laços. Apesar das diferenças do que se comia, vestia, bebia e ouvia, em todos os países existe um mesmo ritual, um mesmo encontro. São as várias possibilidades de tocar variações sobre o mesmo tema, coisa que a pequena turma do jazz conhece bem. Termos como “roqueiro”, “pagodeiro”, “funkeiro” e “metaleiro” despertam nosso sistema automático de forma universal e potencialmente positiva ou perigosa. Como é automático vale ter consciência disso. Qual é a sua praia musical? Espero que várias pois assim aumentam as possibilidades de encontro.

[i] Diana Boer, Ronald Fischer, Micha Strack, Michael H. Bond, Eva Lo e Jason Lam: How Shared Preferences in Music Create Bonds Between People: Values as the Missing Link. Achei interessante a teoria de que embora não haja ligação entre gosto musical e valores nós achamos que isso existe e essa pista aumenta a atração social.

[ii] https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_rock_genres 208 gêneros de rock para quem tiver paciência de contar. Eu acabei vendo uns exemplos de rock turco da década de 70 e rock nórdico gótico que mostram as muitas variações… não pretendo ouvir de novo mas foi interessante.

4 Comments
  • William Arakaki
    Março 5, 2017

    Realmente a nossa tendência a “rótulos” é algo gritante e exagerado. Seria um artifício da nossa mente para facilicitar uma rápida tomada de decisão ou um mecanismo de defesa? Ou ambos?

    Gostaria de ser mais eclético na questão musical mas ainda tenho dificuldades em ouvir aldo diferente de rock’n roll (e das “tribos” mais pesadas… hard rock, heavy metal…). O texto me faz refletir como é importante ter tolerância com todos os estilos mas não é fácil…

    By the way, há várias bandas nórdicas de heavy metal que são muito boas! rs

    • mario_henrique_martins
      Março 26, 2017

      William acho que ambos. Nossos algoritmos simplificam a decisão e dão velocidade que pode significar sobrevivência em contextos de vida ou morte. Em dois posts antigos falei sobre experts/intuição nessa linha (sobre bombeiros e um ataque de elefante…). Heavy não é minha praia mas o importante é curtir alguma praia não é?

  • Carla Weisz
    Março 14, 2017

    Olá Mário!

    Muito prazer! Li as frases aqui e achei muito, elas me inspiram. Cérebro é um assunto que me desperta certa fascinação.

    Sobre seu texto, A grande tribo, achei excelente a relação entre valores e música e me chamou especial atenção esta parte: “O ser humano é recordista em uma modalidade não-olímpica: o salto para conclusões.” Concordo e esta é uma armadilha que apenas com consciência conseguimos evitá-la.

    Sexta-feira, 17 de março estarei na sua empresa fazendo uma palestra. Espero ter a oportunidade de encontrá-lo. Pelo que li, temos boas ideias para trocar.

    Abraço carinhoso.
    Carla Weisz

    • mario_henrique_martins
      Março 26, 2017

      Obrigado Carla. A frase foi adaptada da “máquina de saltar para conclusões”do Kahneman.

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