O abrasivo pode enxergar que é abrasivo?

Se o principal gap de uma pessoa abrasiva é uma brutal ausência do hábito de autopercepção, a resposta é: ele pode enxergar que tem “alguns problemas” mas tem pouca clareza da magnitude dos efeitos e pouca aparelhagem para mudar a si mesmo. Afinal, para aumentar nosso autocontrole, em primeiríssimo lugar vem a autopercepção, certo?

Só podemos controlar o que é percebido. Duas perguntas costumam ser repetidas em relação às pessoas abrasivas: como são toleradas? Será que não percebem o mal que fazem?  Eu creio que há uma ligação entre essas perguntas. Diz respeito ao código de silêncio auto-imposto pelas vítimas e pela vontade de não encarar o fato entre pares e superiores. Nem todos, ou pouquíssimos, tem condição de denunciar maus tratos que ocorrem dentro da casa em que vivem.

Faço uma comparação forte com uma espécie de violência doméstica. Sabemos que uma característica comum de uma liderança abrasiva é a intolerância à discordância ou críticas. Eles confundem isso com oposição e agressão e reagem com extrema violência. Assim dominam. Se o gestor abrasivo desfruta de prestígio, a aposta de chamar a atenção dele e da organização para seu comportamento disfuncional equivale a criticar o corpo de jurados que vai te julgar. Minha observação de quase trinta anos em organizações (quando estagiava já existiam essas coisas) me mostrou um padrão. Abrasivos, enquanto bem sucedidos, tem ao redor de si uma cortina de falsidade que os protege. As suas vítimas sussurram entre si, mas esse som chega muito fraco onde poderia chegar. Pior, mesmo quando uma ação abrasiva é observada por pares ou superiores, circula a versão cômoda de que “a turma sabe que ele é assim mesmo mas que tem bom coração”.

Outra ainda mais frequente é “a equipe já está acostumada e sabe que tem que saber levar bem o cara”. É uma curiosa alucinação coletiva. No entanto, quando o abrasivo cai em desgraça política, a percepção torna-se pública, os sussurros são circulados em maior volume e fatos antigos são usados para rotulá-lo como “limitado e problemático”. Para o abrasivo, a manutenção de seu resultado é de fato questão de vida e morte, não apenas por que ele trata a vida desse jeito, mas por que o apoio lhe será negado de forma digital, brutal, assim que ele se mostrar fraco o suficiente.

Como na vida corporativa predomina o senso comum expresso em “o mundo dá muitas voltas”, mesmo nas situações de queda o feedback que ele recebe é açucarado e esconde a verdade. O abrasivo dificilmente saberá que é abrasivo. Além de não enxergar crueldade e covardia no que faz, ninguém o informa  disso. Já tive gestores abrasivos sob minha gestão. Com alguns não foi possível o diálogo e outros se mostraram dispostos a rever seu comportamento, ainda que isso seja sempre um processo longo, doloroso e incerto. Sei da dificuldade que eles tem em enxergar os fatos pois suas próprias equipes são muito comedidas em lhes dar o quadro real. Deixo uma pergunta final que costumo propor às pessoas abrasivas que eu tento ajudar: “você já reparou que trata clientes e superiores de forma muito educada e prestativa, diferentemente do que faz com seus subordinados? Acha que isso pode ser interpretado como covardia?” Recomendação: cuidado com essa pergunta, ela desperta emoções muito fortes, mesmo em quem te vê como alguém de confiança.

Mais uma vez, se você não conseguir olhar o abrasivo como alguém privado de racionalidade e vítima de profunda falta de autopercepção, vai tender a enxergar maldade nele.Nesse caso, a vitimização será provável e os danos emocionais  serão tão visíveis como os da foto.

No Comments Yet.

Leave a Reply

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *