Momento Black Mirror

A série Black Mirror causa desconforto. É feita para isso. Eu resisti um tempo à forte pressão social liderada por meus filhos, entre muitos. Em um encontro recente sobre Big Data um especialista em inovação foi taxativo em sua palestra: “vocês precisam assistir”. Foi a gota d’água. Assisti e fiquei bastante incomodado. O lado negro da tecnologia que causa angústia e rende filmes é muito real pois se apóia em nossa automática mente propensa à manipulação. Ler e escrever ao volante é um exemplo. Outro é a compulsão de capturar imagens para nunca usá-las. Os zilhões de fotos e filmes que fazemos em geral não são revisitados. Há uma tentativa de capturar aquele momento para um uso futuro que não costuma ocorrer. Em shows eu vejo o tanto de gente que assiste momentos maravilhosos não através de seus olhos mas pela tela do celular. Em show do Pink Floyd vi alguém acompanhando Wish You Were Here pela tela do celular, quando Roger Waters estava ali, fazendo o som ao vivo, em uma interpretação que não poderia ser traduzida pela imagem e som do celular. O momento que mais me impressionou nessa linha de querer capturar o mundo e abrir mão do momento presente ocorreu em um museu[i]. Uma das estátuas mais famosas do mundo, a Vênus de Milo, estava cercada de gente, incluindo a mim e meus filhos. Estava belíssima pois uma luz muito interessante dava um brilho intenso ao mármore. Tirei fotos, é claro. Naquela situação ocorreu o momento Black Mirror: um grupo de turistas asiáticos se aproximou rapidamente como um pequeno exército armado de potentes Nikons e Canons. Um deles jamais tirou os olhos do visor enquanto se aproximou, parou e admirou a estátua. Ele esteve diante da beleza única daquela luz rara de inverno e preferiu assistir tudo aquilo em uma tela de poucos centímetros. Foi embora em busca de outras presas como se estivesse caçando Pokémons. Olhar o mundo através de anteparos no afã de capturar um momento é uma nova escolha tecnológica. Nada contra fotos e filmes. Eu costumo registrar coisas bacanas que vejo. O que me chama atenção é a preferência por olhar o mundo através de telas, filtrando e restringindo o que vemos. Assim como dirigir e escrever ao volante, olhar o mundo através de telas parece ter componente viciante e crescente.

[i] Henkel LA. Point-and-Shoot Memories: The Influence of Taking Photos on Memory for a Museum Tour. Psychological Science. 2013. O estudo feito em um museu de arte indica que somos mais capazes de lembrar das coisas que vimos ativamente e menos das que fotografamos. É claro que vamos esquecendo do que vimos e se revisitarmos um foto antiga vamos recriar o momento de alguma forma mas a questão é se vamos ou não revisitar uma foto anos depois.

3 Comments
  • RITA PESSUTTO
    Novembro 21, 2016

    Tive essa mesma experiência em Roma e o seu texto remeteu a minha viagem quando estava tentando admirar o Coliseu, mas era praticamente impossível com a quantidade de turistas asiáticos que ali existiam com suas máquinas e celulares gigantes.
    Outro momento que me deparei com essa situação foi na capela sistina onde é proibido tirar fotos. Fiquei impressionada com a quantidade de gente querendo obter suas fotos de forma “ilegal”, sendo que ali estava uma das mais belas obras para se admirar em detalhes em toda a sua grandeza.
    Neste momento os asiáticos perderam suas câmeras!
    os policiais obrigaram que os asiáticos apagassem suas fotos.

  • Alexandre
    Dezembro 28, 2016

    Mais um excelente post. E de quebra uma excelente dica. Comecei a assistir a série após ler o blog e gostei bastante. Realmente, feita pra incomodar.

    • mario_henrique_martins
      Janeiro 21, 2017

      Valeu, eu confesso que dei uma parada…é muito deprimente e possível…

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